nandofanclub

Dissertações, opiniões, escárnio e mal-dizer, canções de amigo, pensamentos ociosos, odiosos, preguiçosos, o óbvio, o subliminar, a bela e o monstro, eu, tu, ele, aquele, aqueloutro, o que só acontece aos outros, o que só me acontece a mim. Tenho dito.

23.12.08

Feliz Natal do Pai Nandal

11.9.07

Adio, adieu, auf wiedersen, goodbye



Despede-te deste mundo com espectacularidade e aparato, de preferência em directo para a TVI. Se nada de relevante fizeste na vida, ao menos deixa-a de forma memorável.
Pode ser que o Criador até ache piada. Se não achar, estás fodido. Mas ao menos, podes-te gabar de lhe ter cuspido na cara.

Não devemos menosprezar os prémios de consolação.

4.5.07

Coelho na cartola



A minha namorada pediu-me um coelho anão, para o aniversário dela.
Ok, o bicho até é engraçado... mas perante a enorme e crescente vontade dela (e o meu conhecimento acerca do desempenho procriativo do dito) começo a ficar com ciúmes do animal, e ele ainda nem sequer existe...
Sendo assim, já sei como me vou fantasiar no próximo Carnaval. Mas, dado o meu rigor em vestir a pele de uma personagem, desconfio que não saímos de casa.

16.11.06

Artigo no "Primeiro de Janeiro"

Cliquem para aumentar


11.11.06

Festa de Lançamento "Facas e Alguidares"



Começo por agradecer imenso, a todos aqueles que me honraram com a sua presença, na festa de lançamento do meu livro "Facas e Alguidares", no passado dia 10 de Novembro.
Foi uma alegria enorme receber-vos. Caras sorridentes, boa disposição, cumplicidades copófonas, uma ou outra obscenidade proferida, dedicatórias escrevinhadas em exemplares tão gentilmente adquiridos pelos meus queridos amigos, "bocas" porque o livro podia ser mais barato (não tenho culpa, juro...), uma imensa festa. E tudo porque vocês lá estavam. Não poderia estar mais agradecido.
Vocês são os maiores!









16.10.06

Aluguer



Abraça-me, beija-me como nunca antes
diz-me que hoje seremos amantes
enche o meu ego de carinhos insolúveis
leva-me ao céu
às nuvens
às estrelas, ao espaço sideral
diz-me que serei teu
porta-te mal
navega comigo num mar de prazer
de luxúria, de sentires
de pecado

E se preferires
eu pago adiantado

10.10.06

12 de Abril



Mais uma história escrita originalmente para o formato curta-metragem. Deixo-vos com uma breve resenha do enredo:


A TRADIÇÃO
Uma jovem, aparentando 20 e poucos anos, de corpo atlético, encontra-se amordaçada e amarrada a uma cadeira, num canto do que aparenta ser um armazém. É já de noite. Quase não há luz, apenas a da lua que se escapa por entre pequenas janelas a grande altitude. A rapariga acorda lentamente, como se saísse de um sono profundo provocado por sedativos. Quando retoma plena consciência, entra em pânico, ao aperceber-se do lugar estranho onde se encontra. Debate-se contra as amarras que a aprisionam, mas em vão. Tenta gritar, mas a mordaça não lhe permite soar suficientemente alto para que se possa ouvir para fora daquelas paredes. Chora de desespero.
O seu pranto é interrompido pelo barulho metálico de um portão que se abre. Ouve vozes, embora não consiga perceber o que dizem. Solta um gemido, mas logo se detém. Percebe que o número de vozes aumenta, e então tenta desesperadamente soltar-se, balançando-se violentamente e acabando por tombar de lado no chão, ainda amarrada à cadeira. Arrasta-se, procurando em volta com o olhar algum objecto que a auxilie. Quando olha para cima, vê um vulto a 5 metros de si. É Nuno que a observa, o qual logo de seguida a levanta do chão, enquanto a jovem se contorce com mais medo do que nunca.
Enquanto Nuno solta as cordas, os outros 4 aproximam-se, contemplando o espectáculo. A jovem está finalmente liberta, e atira-se para o canto, chorando e pedindo que não lhe façam mal. Os homens rodeiam-na em semi-círculo, e então Nuno, sorrindo, dirige-lhe a frase: “Então, pronta para jantar?”


O ANO SEGUINTE
Dois homens descem a rua, sorrindo e em amena cavaqueira, como se não se vissem há já algum tempo. Param em frente a uma as casas, e tocam à campainha. Abrindo a porta, surge um homem um pouco mais novo que eles, que os reconhece com satisfação. Trata-os por Nuno e Vítor, já os esperava e convida-os para entrar.
Enquanto os dois recém-chegados se acomodam na sala de estar, a campainha soa novamente e o anfitrião deixa os amigos por momentos, enquanto se dirige à porta. Segundos depois, mais dois homens se juntam ao grupo, sendo recebidos com entusiasmo. Trata-se de João, o mais corpulento e roliço, e Óscar, o mais bem-parecido de todos eles.
O dono da casa, Ricardo, serve bebidas, enquanto se desenrola uma acesa conversa entre todos, depois de informar que a sua namorada, uma enfermeira com quem partilha a casa, está de banco no hospital. Pela troca de ideias se percebe que João é chefe de cozinha de um hotel (por paixão, pois tal como os outros tem formação superior), e que Óscar, apesar de casado, dedica parte do seu tempo em busca de fugazes relações extra-conjugais. São antigos colegas de faculdade, e Nuno é o único que criou o seu próprio negócio, possuindo um armazém.
É introduzido o motivo que os reuniu: chamam-lhe a “tradição”, e referem-se ao dia 12 de Abril, data de aniversário do Nuno, daí a um mês. Recordam vagamente o sucesso que obtiveram no ano anterior: a qualidade da vítima, a forma como acompanharam o seu quotidiano, o papel de Óscar em se aproximar da jovem escolhida, seduzindo-a para obter informações sobre a sua vida, a discrição com que Vítor e Ricardo operaram o sequestro no dia anterior, e os dotes culinários de João. Ricardo interrompe para anunciar que está de casamento marcado para Maio, o que não constituiu surpresa nos outros – já o havia dito no ano anterior. Vítor, que até então quase não tinha falado, sugere em nome do grupo que Ricardo ficaria excluído dos preparativos, sendo que a escolha da “vítima” seria a prenda de casamento. Ricardo aceita com desconfiança, mas sorrindo.
Assim sendo, para não estragar a surpresa, despedem-se de Ricardo e marcam encontro com ele apenas para o dia 12 de Abril, no armazém do Nuno. Ricardo, agora sozinho, recosta-se no sofá, olhando para o vazio com ar apreensivo.


CONTAGEM DECRESCENTE
Num dos seus passeios a pé pela cidade, Joana repara que algo de anormal se apoderou do comportamento de Ricardo. Sente-o mais distante, menos sorridente, olhando à sua volta como se procurasse algo ou alguém. Ricardo nega, dizendo que está tudo bem, tem apenas alguns problemas no escritório, nada de grave. Joana não parece convencida, mas dá-lhe o benefício da dúvida, devido ao aproximar do matrimónio. De noite, enquanto Joana cozinha, Ricardo acorre várias vezes à janela, observando a rua e sobressaltando-se com todos os vultos e sombras que se movimentam, e que parecem ocultar-se quando Ricardo se apercebe deles. Abana a cabeça, como se dissesse a si mesmo que está a imaginar cosas. Ainda assim, durante a noite, aconchega o corpo de Joana ao seu, como se a tentasse proteger de alguma coisa, e tem dificuldade em adormecer.


A TRADIÇÃO
É já de noite. Ricardo prepara-se para sair de casa. Recebe um telefonema de Óscar, que lhe diz estão todos à sua espera. Estranhamente, pergunta-lhe se já se despediu da sua noiva, dizendo que “vai ser uma longa noite”. Ricardo diz que Joana se ausentou para casa de sua mãe, na véspera. Quando Óscar desliga, Ricardo fica visivelmente agitado. Tenta ligar à noiva, mas o telemóvel encontra-se desligado. Nervoso, sai apressado de casa em direcção ao carro, e arranca em direcção ao ponto de encontro.
O automóvel de Ricardo para em frente do armazém. Apeia-se e dirige-se para o portão, ao qual bate sem obter resposta. Num acto reflexo, empurra o portão, que se abre. Entra, envolto em penumbra, e dirige-se para o extremo do armazém onde as vítimas são habitualmente mantidas cativas, mas não vê ninguém. Ao voltar-se para trás, depara-se com os 4 amigos, que o rodeiam em semi-círculo. Nuno, abrindo um sorriso, dirige-lhe a pergunta: “Então Ricardo, pronto para jantar?”

2.10.06

O Homem Inexistente



História originalmente composta para formato curta-metragem, mas deixo-vos aqui um resumo do enredo:

Numa noite como tantas outras, sentado numa mesa de café a um canto, um homem como tantos outros desliza o cigarro meio fumado por entre os dedos, enquanto alterna o olhar entre copo de whisky de malte à sua frente, e a sua mão onde tem escritas uma série de palavras. Uma jovem mulher passa a seu lado, dirigindo-se ao balcão para comprar tabaco. Ele olha-a de soslaio, apenas por um segundo, como se nada nela tivesse captado a sua atenção. A jovem sai, pelo mesmo caminho, em direcção à rua. Ele apaga o cigarro, deixa umas moedas na mesa e sai também.
A rapariga calcorreia a calçada, serena e despreocupada, sem reparar que, a cerca de 10 metros atrás de si, aquele homem segue os seus passos, acendendo um cigarro como se seguisse o seu próprio caminho. Ela nunca se volta para trás, não sente a sua presença, como se ele não estivesse realmente lá.
Ela chega a casa, abre a porta e entra. O homem aproxima-se da porta por onde a jovem entrou. Agarra na maçaneta, roda-a e a porta abre.
Encontra-se numa sala, onde pode ver um sofá, estantes com livros, uma televisão, alguns objectos pessoais, e fotografias onde se encontra a dona da casa com o que parecem ser amigos e familiares, em diversas circunstâncias, bem como um diploma de universidade. Ele explora um pouco esse mundo de memórias, observando as fotografias, os livros, as revistas, e detendo-se um pouco mais no diploma.
Pelo corredor observável da sala através de uma arcada, a jovem circula, primeiro do quarto para a casa de banho, e depois no sentido contrário, já enrolada numa toalha. Tudo isto enquanto o estranho se movimenta pela sala. Durante as passagens pelo corredor, esse estranho está ao alcance da vista da rapariga, mas ela nunca direcciona o olhar para a sala, tal é a improbabilidade de lá estar alguém.
Já sentado no sofá, ele recebe a companhia de um gato, que se enrola nas suas pernas. Ele debruça-se e acaricia o pêlo do animal. Pousa o objecto que tinha nas mãos (um álbum de fotografias), levanta-se calmamente e dirige-se para o quarto. Ela dorme serenamente. O estranho senta-se na beira da cama, aconchega-lhe o cobertor, afaga-lhe o cabelo, e beija-a na testa em tom paternal.
Bruscamente, debruça-se sobre ela.
Na casa de banho, encontra-se inclinado sobre o lavatório, onde escreve algo a caneta na mão, junto de outras palavras que já lá estão escritas. Essas palavras são nomes de mulheres, e ele acrescenta o nome da dona da casa: Isabel. Finalmente, e pela primeira vez, rasga um sorriso cínico e aterrador.

18.9.06

Aconteceu



Não posso acreditar!
as mulheres são má rez, fujo delas a sete pés
e fui-me aprisionar – outra vez…
Oh tentação, oh devaneio
oh prazer malfadado
dois dedos de paleio, um vislumbre do seio
batôn encarnado
fui apanhado.
Esta mulher maravilha
agarrou-me pela braguilha
e deixou-me preocupado.

5.7.06

A confissão de João



Amo-te, João!
Eu disse que também a amava, mas era mentira. Uma mentira que, a grosso modo, até se revelava verdade; os homens confundem muito Amor com Luxúria. O que basicamente é a mesma coisa.
Os olhos com que eu fitava Luísa eram luxuriosos. Os olhos com que Luísa me presenteava denunciavam algo diferente, talvez o que chamam de amor. Tal como o olhar do meu cão. Esse sim, amava-me incondicionalmente, desde que continuasse a alimentá-lo. E eu amava aquele rafeiro. Adolfo, anda cá, rebola, faz de morto. Que maravilha…
Mas Luísa eu não amava. Ela havia-se mudado lá para casa a meu pedido, e sem dúvida que agora estava mais limpa e arranjada – a casa, claro. Era uma boa companhia, não chateava muito e tinha um formidável desempenho entre os lençóis.
E foi na alcova, no arrefecimento pós-coito que me confessei, um pouco por culpa dos 3 whisky de malte que tinha no bucho. Ela declarou-me novamente a natureza do seu afecto por mim, e eu não respondi. Mas aqueles olhinhos decepcionados reclamavam uma resposta. E eu dei-a. “Lamento, Luísa, mas não te amo”. Ela soluçou, virou-se e adormeceu.
No dia seguinte recebo uma chamada no escritório. Era ela. Disse apenas isto: “João, a nossa relação morreu, mas essa morte vai ter companhia”. Nem tempo tive de abrir a boca, corri movido a jacto para casa, tentando evitar a tragédia. Oh Luísa, que vais tu fazer…?
Quase arrombei a porta. A casa estava enterrada num silêncio que bradava aos céus. Um papel repousava na mesa, onde a caligrafia de Luísa sobressaía na palavra “Adeus”. Gritei por ela, mas sem resposta. Não a encontrava. Entrei na cozinha, e senti-me estilhaçar como vidro perante o horrendo espectáculo daquele corpo inerte, sem vida. Uma parte de mim também morria ali. Foi a última vez que Adolfo fez de morto, mas já não era a fingir.

14.6.06

Sandra e o príncipe



Sandra sempre fora bela, desde os seus verdes anos. E como todas as jovens sonhava com o príncipe encantado, com um amor que arrebatasse o seu doce coração de menina. Nada mais natural.
Sandra fez-se mulher, mas o seu coração ainda suspirava pelo cavaleiro da armadura reluzente. Francisco sabia disso, e Sandra sabia como o seu amigo aspirava ascender a tão garboso patamar. Mas não era suficiente, o príncipe ainda haveria de chegar. Era uma questão de tempo.
E o tempo passou. Dias, meses, anos. Sandra já não era uma jovem, apesar de conservar aqueles traços únicos, aquelas feições. Por mero acaso, reencontrou Francisco. O amigo encontrara harmonia noutros braços, que não os que desejava. Desejara sempre os de Sandra, mesmo após todos estes anos, mas nunca os encontrou abertos, nunca aqueles lábios se insinuaram para o saciar. O único que quisera ser o príncipe, nunca passara de pajem. Mas como a vida arrepia caminho sem pedir licença, Francisco não se prendeu à fantasia.
Sandra regressou a casa, àquelas quatro paredes despidas de afecto. Filtrou o seu chá, recostou-se na poltrona e fitou o vazio. Pensou no cavaleiro audaz que nunca chegou, no amor que nunca recebeu, nos carinhos que escusou aceitar. Pensou em Francisco, e uma lágrima solitária serpenteou pela sua face. Envolta na penumbra, cerrou os olhos embargados e adormeceu.
E não acordou mais.

1.6.06

Tomás



Tomás acordou com o raiar da manhã. Há anos que tem a mancha de humidade no tecto, como única companheira de alvorada, após o desvanecimento da prole em circunstâncias várias. Ergue da cama o corpo, pesado pelo tempo, e queda-se momentaneamente o seu olhar no retrato a sépia de Margarida.
Ah, Margarida. Não fosse a imagem emoldurada na parede, e já o seu rosto não cabia nas memórias de Tomás. O rosto não, mas o significado dessa mulher na sua existência nunca esmorecera. Margarida ERA a sua existência. Os filhos, apenas uma consequência, uma lei genética. Margarida era lei divina, vetada sem pré-aviso.
Abriu a janela; a maresia assemelhava-se a feromonas do passado, as aves voavam como voava o pensamento de Margarida, as crianças pareciam os frutos que ambos haviam colhido. Olhando para o céu, Tomás suspirou e disse baixinho: “Um dia destes, mato-me”.

25.5.06

Anjo



Dorme, meu Anjo, tem confiança
está cumprida a missão que o Mundo te deu.
Lança-te nos braços de Morfeu
e descansa.

8.4.06

Segunda pele



Estou no vento que cortas com o rosto
Sou o teu sal, o teu mel, o teu mosto.
Habito a tua cama e os lençóis que te aconchegam
envolvo-te na toalha que te enxuga o corpo.
Estou nos afectos que não te chegam
sou a tua falha, o teu sucesso
o teu desgosto.

Sei o que fizeste, sei o que deixaste para depois.
Estou na bruma que te turva o olhar
no sol que te ofusca
na lua que te faz sonhar.
Quando estás só, mas sentes que somos dois
cessa a tua busca
teus olhos não me irão encontrar.

21.3.06

O macho, esse enfermo



Nós homens (sim, a metade masculina do ser humano) encontramos um precioso subterfúgio para um merecido retorno à doce infância: ficarmos doentes.
Mas há uma condicionante: qualquer que seja a maleita, terá de ser abalo suficiente para nos tombar na cama por mais de 24 horas. Aí, no nosso trono de tormento, bradamos aos céus o mal que sobre nós se abateu, entre gemidos e manifestações de vulnerabilidade. É o regresso trágico ao berço, de onde exigimos carinho, aconchego e comida levada à boca. E retribuímos com baba e ranho, num insaciável pranto de sofredor que, com a perspectiva do fim dos seus dias, chantageia atenção redobrada.
É quase desumano obrigar um homem a combater a mariquice subjacente à enfermidade – será sempre uma luta ingrata, pois nada há de mais doloroso do que esgrimir contra a nossa natureza. Está-nos no código genético. Já dizia a minha avó: “na doença, todo o homem é larilas” - por isso, nunca gostei de hipocondríacos…

7.3.06

Cortesã



Hoje é o meu aniversário
e a prenda vem a caminho
devagarinho.
Serás o corolário da comemoração.
As tábuas rangem de mansinho, denunciando a aproximação.

A minha escolha foi de antemão.
A opção da diabrura caiu na tua frescura
- ou o meu olho falha, ou não tens calo na profissão.
As tuas mãos tremem contra o corrimão da escadaria.
Temes o que te aguarda
corrói-te a perdição.
Ferve numa correria o sangue cortesão
da nova cativa da mansarda.

Nem anjo da guarda, nem fé ou convicção
exorcizam os demónios que te dançam no olhar.
O torpe caminhar tem na porta interrupção
oh não, já vieste longe demais para voltar.
É altura de entrar – estende a mão
vem-te entregar.

9.2.06

CHE



Há pessoas que desaparecem. Pura e simplesmente. Estamos todos num bar, de JB na mão, a contar anedotas e aventuras rocambolescas e, na manhã seguinte, alguém se esfuma no ar, desaparece sem deixar rasto.

Pior, só mesmo se a pessoa se esfumar literalmente.
Manchester, finais do século XIX. Uma baronesa de setenta e sete anos de idade conversava com a sua empregada interna antes de se deitar. Algum tempo depois, vencida pelo sono, sobe para o seu quarto no primeiro andar da mansarda, onde adormece quase de imediato. Cai o silêncio.
Na manhã seguinte, a fiel criada sobe aos aposentos da baronesa, que fazia questão de ser acordada às oito horas em ponto todas as manhãs. Ao entrar, deparou com um cenário peculiar: fazia-se sentir um odor nauseabundo, as paredes e o tecto estavam cobertas de fuligem e do parapeito da janela escorria uma viscosidade negra que tresandava a algo parecido com enxofre. Na cama os lençóis estavam afastados, o que indicava que a velha senhora se havia levantado. Finalmente, quando olhou para o chão, viu um monte de cinzas de onde sobressaíam farrapos chamuscados da camisa de noite da baronesa. Ao lado, restava um chinelo com o pé direito da septuagenária dentro dele, bem como a parte posterior do crânio e algumas reminiscências de tecido cerebral. O mais estranho é que, tirando o escurecimento pela fuligem, o quarto estava intacto. Nada havia sido destruído pelo fogo, nem sequer existiam indícios de incêndio.
Dois dias depois, o médico legista foi peremptório: Combustão Humana Espontânea.

18.1.06

O silêncio é de ouro, quando não é de latão



"O silêncio é de ouro". Há quem diga também que "os olhos são o espelho da alma". Chavões com piada, sem dúvida. Cá vai outro de contornos bíblicos: "no início era o verbo".
Será que os actos suplantam as palavras? Poderão ocupar ocasionalmente o seu lugar. Por vezes, uma expressão irada será mais eficaz e fulminante do que um eloquente monólogo; um piscar de olho será suficiente para definir intenções - neste caso, as palavras que se seguem serão consequência directa da prévia expressão corporal. Por vezes, nem é necessário haver premeditação: um tique nervoso ou uma pertinente dificuldade em fitar os olhos do interlocutor, podem denunciar uma falsidade nas frases proferidas.
Tudo é comunicação. Desde o dedo médio em riste com que um condutor presenteia outro, passando pelo grunhido monossilábico de quem não percebeu a pergunta, pelo sugestivo cruzar de pernas presente na linguagem da sedução, pelo nervoso bater da caneta na mesa quando o exame se transforma num pesadelo inquisitório, acabando num demagógico e sonolento discurso à nação nas vésperas da ida às urnas.
Quer queiramos, quer não, basta estar vivo para comunicar, directa ou indirectamente. Mesmo a intensidade da respiração pode fazer transparecer o nosso estado emocional para o exterior. Assim sendo, e porque “em terra de cegos quem tem olho é rei”, ou então é ciclope, quem atingir o total controlo das suas palavras e acções, tem o mundo na mão.

7.1.06

O que é nacional é (mais ou menos) bom



Venho por este meio declarar que, em minha modéstia opinião, o Design português está bom e recomenda-se. Neste jardim à beira mar plantado, o que por cá se faz em termos de Design contribui tanto ou mais que o Mourinho ou os Madredeus para o prestígio nacional.
Senão vejamos: o logótipo da candidatura portuguesa para a organização do Euro 2004 foi uma pérola. Encomendado à pressa pelo malfadado Carlos Cruz a um qualquer gabinete sem história, veio a revelar-se como uma verdadeira jóia da nossa comunicação – tratava-se de um “clipart”, retirado talvez de um qualquer arquivo do Publisher, mas genialmente invertido pelos autores da façanha, que aplicaram também as nossas orgulhosas cores à obra. Como consequência disso, e ganha a organização da prova, toda a imagem do Euro foi concebida lá fora, num qualquer país de menor capacidade de desenrascanço que nós. E que lindo foi ver o nosso “clipart” desenhado pelos corpos de milhares de pessoas no estádio nacional…
Há tempos idos, chegou-me aos tímpanos outra história de glória do Design português. Num certame de prestígio, iam membros do júri (provavelmente após um jantar bem regado) a passear por entre as obras a concurso. Reparam numa peça linda de morrer, um produto de design em todo o seu esplendor. Atribuem-lhe um merecido primeiro prémio. Mais tarde vem-se a saber que a obra galardoada não estava a concurso, mas fazia parte da mobília. Chorei de comoção.
Mais recentemente noutra louvável iniciativa, desta vez no Centro Português de Design [a nossa Sé Catedral] os prémios foram atribuídos a membros do júri desse mesmo concurso. O C.P.D. teve inclusivé a gentileza de publicar orgulhosamente tais resultados, para que dúvidas não restassem. Já não tenho lágrimas que cheguem para tais emoções.

5.1.06

Lá fora continua a chover



Lá fora continua a chover. Uma chuva miudinha, que molha sem levantar muitas suspeitas. Nunca gostei de dias com precipitação, nem de cafés apinhados – por isso escolhi este, recatado e pouco frequentado, terapia ideal para a minha fobia de multidões. Luzes frias, cores quentes, Norah Jones sussurrando frustrações de infância, decoração igual a tantas outras, patrocínio nas chávenas, cigarro aceso como companhia matutina.
Ainda nem acredito que é dia não útil, dez da manhã, e eu já estou fora da cama. O mesmo pensará o empregado que me serviu; deve ter usufruído de uma noite produtiva, pelo menos a julgar pelas olheiras, embora mantenha um cordial (e sonolento) trato. Trouxe-me um cimbalino proveniente de um lote bastante torrado, talvez queniano ou timorense. Ou se calhar é brasileiro. Pouco importado com isso está o casal sexagenário do meu flanco direito, a duas mesas de distância, envergando indumentárias domingueiras, apesar de ser sábado. Ele lê o politicamente correcto “Jornal de Notícias”, ela entretém-se com um livro cujo título não consigo descortinar, mas que me parece ser um daqueles romances cor-de-rosa, de paixões proibidas, traição, vingança e amor virginal a rodos.
Sentada no ponto mais distante ao que eu me encontro, está uma senhora de meia-idade com o seu lulu enrolado nos pés, ignorando o ignorável aviso na porta do estabelecimento, que adverte para a proibição da entrada de animais irracionais. Também lê (ela, não o canídeo), tratando-se desta feita de uma qualquer publicação periódica. Pelo brilho nos olhos, deve estar a inteirar-se da nova festa jet-set num bar “in” da costa algarvia.
Quanto a clientes, resume-se a isto. Pelos envidraçados percebe-se que a cidade ainda está meio adormecida, na ressaca de uma habitual noitada de sexta-feira.

26.4.05

Esquina

prostitute

Dobrei a esquina em ângulo recto
e lá estavas tu, escondida na penumbra.
É esta visão que me deslumbra
todo o seu seu conjunto
mas nada em concreto.

A mais antiga ocupação humana
de que há memória.
Plena de história, sedução.
Promessa orgásmica que teu corpo emana
paga ao tostão. Aí terei quinhão.

Não fujas, não sou o inimigo.
Sou talvez o teu castigo
pela tua fraca opção.
Não importa aprender ofício
para este ganha-pão.

Sou teu irmão – mas com menos sacrifício.

11.1.05

Amor de rua

A pedido de muitas famílias, mais um momento com a qualidade a que já vos habituei:




Nunca a minha alcova encerrou
tanta beleza como esta noite.

Não é minha noiva

não é minha consorte

pobre alma que a minha encontrou

para perder o norte – fraca sorte…


Café e cigarros, amor e amargura

os alimentos dos errantes

pérfidos amantes na noite escura.

Já tens a tua paga

põe-te na rua.

24.12.04

Depressão - vendo barato, trata o próprio.

deprimido

Já algum de vocês teve uma depressão? Provavelmente. Então quando acabarem de ler estas linhas vão nutrir por mim um ódio ainda maior do que devem sentir agora.
Sempre considerei essas patologias do foro neurológico como maleitas de ricos, ou de quem não tem mais com se preocupar. Imaginem que tinham nascido no meio rural, lá prós lados de Freixo de Espada à Cinta. Imaginem: têm que se levantar às cinco da manhã e ir dar de comer aos porcos com uma malga de sopas de vinho no bucho, para de seguida irem apalpar o cú às galinhas e perspectivar a safra de ovos; segue-se a ordenha de duas ou três vacas mal-dispostas, o encaminhamento das ovelhas para o barbeiro, o banho do touro cobridor, a desinfecção das cavalariças com sabão e palha de aço e, finalmente, as tarefas de plantio e adubagem dos mais variados produtos hortículas. Chegam a casa (ao barraco de madeira), tomam banho numa bacia de estanho, jantam o habitual chouriço cozido com batatas a murro, cumprem os deveres conjugais e adormecem mal o sol se põe. No dia seguinte, a história repete-se.

Cá vai: teriam vocês sequer TEMPO para depressões? Não respondam, a pergunta é retórica. Neste momento temos a primeira conclusão precipitada: depressões e outras paneleirices do género são doenças citadinas.
Serão?...
Vamos para a periferia de Lisboa. O cabo-verdiano Manuel Chibata acorda às cinco e quinze, come uma peça de fruta e apanha o 34 da Carris até à Praça do Comércio, onde tem que apanhar o 80 até ao cais, e onde embarca no cacilheiro rumo à margem sul. Segue-se um derradeiro autocarro que o leva à obra de um condomínio fechado em fase de fixação de alvenaria, onde o Manuel exerce as funções de servente de pedreiro. Passam trinta minutos das sete e já o primeiro balde de massa vai equilibrado na cabeça do trolha insular. Tem meia hora para sorver um prato de sopa de nabos antes de voltar ao serviço. Por volta das dezanove (se não fizer horas extras), percorre o caminho inverso rumo a casa (ao barraco de chapa) em Chelas, onde às vinte e uma horas janta a sua sandes de coirato e certifica-se se o puto mais velho perdeu o vício de fazer chamadas dos telemóveis alheios. O dia seguinte é um clone do anterior.

Segunda conclusão precipitada: depressões e outras paneleirices do género são doenças de classe média/alta citadina.
Serão?...
Margarida Duarte, enfermeira no Hospital de Leiria, levanta-se com o primeiro raio de sol. Toma um rápido duche, veste as crianças, dá-lhes o pequeno almoço e às sete e meia deposita-as no infantário. São oito horas quando entra nas urgências para mais um rotineiro dia de sangue, tripas e ossos partidos. Ao fim da tarde vai ao snack-bar do Sr. Manuel comer qualquer coisa antes de regressar ao hospital – hoje está de serviço, só deverá sair por volta das quatro da manhã. E terá que se levantar três horas depois para levar as crianças ao infantário e voltar ao serviço de urgências. Margarida está três dias por semana de serviço.

Terceira precipitação: depressões e outras paneleirices do género são doenças de ricos citadinos.
Serão?...
...

7.12.04

Amor & Antropofagia

Hoje vai um poema, para quem duvide da minha sensibilidade...

vlad

Levei-te ao melhor restaurante da cidade
(é minha tradição levar as moças para jantar,

relembra-me os meus tempos de mocidade).

Puxei-te a cadeira para te poderes sentar.

Olhaste o Rothmans que te ofereci. Disseste que sim.

Retribuiste com um sorriso.

"Sabes, gosto muito de ti". Ela gosta de mim.

Como se isso fosse preciso...

Devorei o teu olhar amendoado juntamente com os camarões.
Mandei vir pato assado e Don Perignon de '62.

Já sinto o cheiro dos lençóis...

As aves estavam deliciosas;
assim como será certamente a tua pele ruborizada

pelo calor de mãos curiosas. Vem aí a maçã assada.

A conta, um último cigarro, e levei-te de volta à segurança do lar.

Convidaste-me para entrar. Tenho champanhe na mala do carro,

espero que tenhas caviar...

21.11.04

Vlad

vlad

As pessoas, por vezes, são extremamente irritantes. E quase sempre o são, sendo quem são habitualmente. O que me faz pensar que talvez a culpa seja minha. Alguns dias tenho paciência para as aturar, para as acarinhar, para conversar com elas, escutar as suas mágoas, rir com elas, trocar anedotas sobre a última desgraça nuclear, falar das mamas da minha vizinha do 3º esquerdo, do golo do Sá Pinto, do aumento das taxas de juro no crédito à habitação, das teorias oníricas de Jung, do gato que passei a ferro na IC1, da demissão do Ministro do Equipamento, das vantagens da masturbação, de qual será a melhor marca de cerveja preta... outros dias só me apetece dar-lhes um tiro na fronte.
Não, isso é demasiado indolor. Têm que sofrer.

Os empalamentos sempre me fascinaram. Vlad, o primeiro Conde Drácula, empregava esta prática para acarinhar os traidores e condenados capitais. Era a execução mais barata do mercado: bastava uma resistente estaca de madeira presa perpendicularmente ao solo, com a ponta superior bem afiada; o felizardo era içado até à altura da vara, denominada então de palo, e era enterrado na madeira, numa operação em que a ponta do palo penetrava a carne junto à base da coluna vertebral, rasgava todo o tórax e voltava a sair do corpo acima do externo. Apesar de se executar rapidamente, o empalamento proporcionava aos condenados uma morte lenta e agonizante, que se poderia estender por vários dias consoante a quantidade de sangue que o empalado tivesse nas veias. Para prolongar o calvário, matava-se frequentemente a sede aos desgraçados.

É certo que os gritos agudos das vítimas, durante o empalamento num terreiro próprio, eram uma inesgotável fonte de divertimento para os seus carrascos; mas o verdadeiro divertimento, esse, estava reservado para Vlad. O Conde havia mandado construir uma espécie de terraço no topo norte do seu castelo, onde estava situado o terreiro dos empalados. Era aí que tomava as suas refeições, enquanto se deleitava com a visão proporcionada pelos corpos de onde a vida se esvaía a cada gota de sangue que beijava o chão. Os lamentos surdos provocavam-lhe deliciosos arrepios na espinha.

Esta prática estendeu-se durante gerações de Condes Drácula. Há ainda nos Cárpatos quem afirme que, durante certas noites, é possível ouvir ao de longe os gritos aterrorizantes dos condenados de outrora.

A culpa a quem a sente

a culpa de rider-waite

A culpa é algo de muito subjectivo. Regra geral, só é culpado quem é apanhado. Só que hoje em dia já não é bem assim; um indivíduo pode ser visto por dezenas de pessoas a esvaziar o carregador de uma semi-automática no crânio de um pobre desgraçado, para que depois um advogado habilidoso alegue insanidade temporária em tribunal, porque o réu tinha visto a sua dedicada esposa em amena confraternização com o indivíduo a quem, minutos depois, esburacou a cabeça. E sai em liberdade, como um herói. Algures na bíblia, pode-se ler: “olho por olho, dente por dente”, e há quem siga as escrituras à letra.
Tempos houve em que a coisa funcionava um pouco ao contrário. O acusado não tinha sido apanhado e já estava a assar na fogueira. A Inquisição era algo de fantástico: bastava que alguém arranjasse uma história sobre ter visto a padeira a sair à rua numa noite de lua cheia, e voilà: bruxa no churrasco. Hoje seria, sem dúvida, uma solução prática para eliminar o vizinho que não nos deixa dormir antes das duas da manhã.

Mas a questão da culpa, no seu sentido mais lato, não se fica pela condenação exterior; existe também como luta interna, que cada um trava ou não, conforme os casos. Um anónimo cidadão inglês era (raramente) visto a vaguear de valise de médico na mão, por entre a penumbra e o nevoeiro que naquela altura ainda sufocava Londres. De noite, todos os gatos são pardos; por isso, nunca se soube quem esventrou aquelas prostitutas. Jack transportava na sua valise um pequeno conjunto de instrumentos cirúrgicos, devidamente esterilizados, que utilizava metodicamente para rasgar as suas vítimas, do baixo ventre ao externo, num ritual que se repetia sem seguir calendário, em noites escolhidas aparentemente ao acaso. A última vítima foi encontrada junto ao Tamisa, com o fígado e o coração separados do corpo e o intestino delgado serpenteando em volta do tórax.
Seria Jack culpado, quem quer que ele fosse? Não o era porque não foi apanhado e não o era porque não achava que tivesse feito algo errado. Provavelmente acreditava que tinha feito um favor àquelas mulheres, libertando-as de um mundo cruel e da desilusão da vida.

Estava de consciência tranquila.